segunda-feira, 9 de maio de 2011

Os limites da democracia libertária: Quanto vale a abstenção? E o voto em branco?

Voto - Sufrágio ou manifestação da opinião individual
a respeito de alguma pessoa ou de alguma coisa que queremos
ou que não queremos que seja eleita ou posta em vigor.
(in dicionário priberam da lingua portuguesa)

Desengane-se quem acha que a abstenção e o voto em branco representam uma tomada de posição política: isso só aconteceria de forma clara através da adopção de um programa político ou da expressão pública clara de qual o sentido desse não voto. Na prática, as únicas formas de saber se seria esse o sentido do não voto, implicaria ou a sua transformação em voto - isso implicaria assumir uma existência legal para efeitos eleitorais -, ou a afirmação de um grande movimento social e político que tomasse as ruas e anulasse o significado e os efeitos do processo eleitoral. A primeira opção é uma contradição nos termos; a segunda, a acontecer, poderia até constituir um ponto de partida, mas deixaria todas as possibilidades de saída em aberto, e uma saída democrática implicaria organizar processos de decisão política que poderiam incluir mecanismos de votação.

A desvalorização do poder do voto está presente, por exemplo, na ideia de uma democracia libertária, a qual até pode assumir a defesa de um programa político mas parte do pressuposto que este não deve ir a votos, que deve ser conquistado pelas práticas sociais, nas ruas, pela acção directa. O pensamento libertário não é, de facto, apolítico e é a sua valorização do acto, da acção, da participação, da defesa da transformação pelas práticas e pelas relações sociais que o tornam tão interessante – de facto, em tempos como os de hoje, precisamos tanto de uma cultura de democracia participativa como de pão para a boca. Mas é na desvalorização, quase negação, do poder do voto que está a sua contradição e a sua fraqueza. Contradição: se todo o acto é um acto político, porque é que não há de o ser também o voto? Fraqueza: não é a rejeição do valor do voto a base de um pensamento fascizante?

Neste sentido, a questão que se coloca é: se não nos revemos no mundo em que vivemos porque é que não exploramos alternativas, apresentamos novas propostas, e batemo-nos por elas, nas ruas e nas urnas? Porque esta democracia é capitalista e temos de estar fora dela, dizem-nos uns. Porque os partidos estão submersos nos jogos de poder e de dinheiro, acrescentam. Porque o sistema não permite escolhas verdadeiramente democráticas, dizem outros. Porque construir alternativas requer construir novas formas de organização, isenta dos vícios dos jogos de poder, isenta dos vícios do capitalismo. Tudo isto tem tanto de verdade como de mentira; tanto de potencial de transformação social como de potencial para a manutenção do estado actual de coisas:
  1. Mais coisa, menos coisa, esta é a democracia conquistada pela Revolta de Abril. Teve recuos? Claro que sim. É bem mais capitalista do que aquela que foi sonhada pela constituição de 75? Claro que sim. Mas não estou a ver em que é que não votar torna-a menos capitalista.
  2. Não há política sem relações de poder - estas assumem, às vezes, a faceta de jogo e, sim, o dinheiro conta nesse totobola -, e não há política sem disputa de interesses. Os jogos de poder e a disputa de interesses não existem apenas nos partidos. A política, se se pretende que seja consequente, que produza mudanças e contribua para a transformação social, implica a disputa de poder, seja ele o poder das ruas ou o poder institucional. Se é verdade que a construção de alternativas implica o ensaio de novas formas de organização social, não nos podemos dar ao luxo de abdicar de uma das conquistas da nossa democracia: o direito ao voto e a liberdade de organização política. Pintar essas conquistas como algo obsceno, como algo do qual nos devemos distanciar, foi uma das maiores vitórias simbólicas do populismo e da cultura capitalista.
  3. Os partidos devem ser sujeitos à crítica e ao escrutínio democrático. Claro que sim. E isso só é possível pela reapropriação, pela gente comum, da política, incluindo a partidária. Se é verdade que os partidos não se devem substituir aos movimentos sociais, a forma de organização em partido político tem as duas vantagens: implica um compromisso com ideias e programas que, em tese, torna a política um acto consequente. Exigir a transparência dos compromissos e a coerência dos actos é, em meu entender, uma tarefas fundamentais desse escrutínio democrático. Ora, as eleições são um momento chave desse escrutínio.
  4. É fundamental ensaiar práticas contra-culturais, construir alternativas à cultura capitalista dominante. Sem dúvida que sim. Precisamos de ensaiar alternativas para nos dar alento, para experimentar a sua viabilidade, constituirmo-nos como sujeito(s) político(s) colectivo(s). Não nos iludemos, no entanto, quanto à pureza dessas novas formas de organização, porque o erro faz parte da vida, da individual e da colectiva. Vou mais longe ainda: o erro é um verdadeiro laboratório de aprendizagem individual e colectiva. Para bem ou para mal, uma aprendizagem colectiva que parta do aqui e agora, requer a disputa de poder dentro e fora do contexto cultural dominante.

Daqui a menos de um mês teremos eleições e estou convencida a que assistiremos a uma das campanhas eleitorais mais surreais da história da democracia portuguesa. Suspeito que ao fim destas quatro semanas, a vontade de não votar e de mandar as urnas às urtigas será imensa. É tempo de reflectir: Quanto vale a abstenção? E o voto em branco? Em qualquer dos casos, e segundo as regras do jogo democrático, o que conta são os votos expressos em urna. Tudo o resto vale nada, nicles, zero. Até pode ser visto como resultado de um sentimento de revolta perante o estado actual de coisas, mas também da indiferença, da inacção, do tanto faz. Mais do que nunca, e face o poderoso atropelamento democrático que está a ser feito, há que ser claro: abstermo-nos num jogo em que o programa da Troika conta já com o apoio dos dois maiores partidos do cenário eleitoral português e do populismo-mor, não votar corresponde a compactuar, pela inacção, com a política da austeridade, da precariedade e do atrofiamento democrático.

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5 comentários:

  1. Dizer que a "democracia libertária" recusa o voto é inexacto. Pode contestar o sistema de democracia representativa, mas na base de assembleias de cidadãos, "participativas" e igualitárias, onde se vota também e até vota mais e mais vezes.
    Também não é uma consequência necessária para quem assuma as posições da "democracia libertária" ou "directa", contestando os sistema representativo e a divisão estrutural e permanente entre governantes e governados, abster-se de votar nas eleições que temos. O facto de se querer transformar e democratizar radicalmente o regime das relações de poder existentes (na política, na economia, etc.) não implica que não se aja no seu interior ou não se intervenha "institucionalmente".
    Houve e continuarão a existir anarquistas que assumem as posições de que aqui é acusada a "democracia libertária". Mas fazer caracterizar por elas o conjunto do movimento libertário e da sua história é absolutamente disparatado.
    Acresce que o traço distintivo da "democracia directa", "libertária" ou "igualitariamente participativa" é o princípio da participação de todos os cidadãos na deliberação e decisão das leis e medidas por que se governem. E que, pelo menos assim entendida, a democracia é uma forma de autogoverno que, sem reduzir a política ao voto, implica mais a sua extensão e frequência crescentes do que o contrário.

    Saudações democráticas

    msp

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  2. Miguel, a ideia era acentuar a tendência para desvalorizar o voto - e às vezes a recusa - não tanto fazer equivaler democracia libertária a recusa do voto. De qualquer forma, agradeço o alerta. Sobre a questão de fundo, que queria colocar em debate, concordo contigo: «O facto de se querer transformar e democratizar radicalmente o regime das relações de poder existentes (na política, na economia, etc.) não implica que não se aja no seu interior ou não se intervenha "institucionalmente".»
    Retribuo as saudações democráticas :) Lídia

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  3. OK - fica tudo mais claro assim. Já fui à tua outra loja dizer isto mesmo. Também eu acho que as questões subjacentes ao nosso mal-entendido são boas e vale a pena pô-las enquanto andamos.

    Abrç

    msp

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  4. Acho que sim, são questões que importa ir aclarando pelo caminho. Abraço, Lídia

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  5. Blá blá blá, e não dizem nada .... é desta porcaria que são feitos os nossos politicos!!!! e mais uma razão para eu votar no P.N.R.

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