domingo, 12 de junho de 2011

Enquanto se contam mortos e feridos

A blogosfera arde em discussões acerca das razões pelas quais o Bloco foi derrotado. O afamado cidadão Cavaco Silva desdobra-se em frases e motes mobilizadores a lembrar outras épocas, épocas em que terá (ou não) assinado declarações engraçadas (ou não).

Nada disso me interessa, confesso. A política dos estandartes e do soundbyte, que os blogues portugueses não parecem ter vindo amainar, não se compraz com desacelerações contemplativas. E só percebemos que a política, hoje, é uma arena de combate entre grupos organizados quando investimos tempo nessa desaceleração e contemplação. Sei perfeitamente que isto não é giro ou interessante. E também sei que a maior parte dos entendidos que navegam pela blogosfera, com uma observação aguda acerca da esquerda-caviar e de como somos todos uns iludidos que deviam era ir trabalhar, não quer saber destas coisas para nada. Pois olhem: eu quero. É que a política como combate organizado é aquela que importa. Não é a do voto perdido.

No próximo dia 23 de Junho, o Parlamento Europeu votará um conjunto de medidas que modificará todo o equilíbrio de forças do processo de integração europeia, hoje por hoje periclitante e ameaçado. Por um lado, a Comissão Europeia adquirirá poderes para sancionar Estados-Membros (EM) da zona euro que não respeitem o Pacto Euro-Plus e uma série de indicadores prospectivos da sua performance económica, sem intervenção significativa do único órgão directamente eleito, na arquitectura da UE - o Parlamento -, e sem possibilidade real de recurso para o Tribunal Europeu ou Tribunal de Contas.
Duas dessas medidas são particularmente inquietantes, porque se tratam de modificações fundamentais à União Económica e Monetária - o Procedimento para Correcção de Desequilíbrios Macroeconómicos Excessivos e o Procedimento para Correcção de Défices Excessivos. De acordo com Fritz Scharpf, professor emérito do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, estas medidas são extraordinárias por um conjunto de razões. Cito:

"First, it [o programa a ser votado] replaces the rule-based approach of the Maastricht Treaty and the Original Stability Pact with a highly discretionary regime of supranational economic management. Even the new EDP [Procedimento para Correcção de Défices Excessivos] will now refer to projections of "potential growth" for its assessment of national budgets. And the EIP [Procedimento para Correcção de Desequilíbrios Macroeconómicos Excessivos] must depend on disputable hypotheses (...). Since the capacities of governments to exercise indrect influences over such variables as nominal wages, private saving and spending, consumer credit, etc. may either not exist or differ enormously among member states, compliance with the "recommendations" issued by the Commission may well be impossible." (p. 30)

Para que se perceba: o novo regime de governo económico da União basear-se-á em indicadores prospectivos e hipóteses de base pouco sólida. A Comissão Europeia, órgão sem legitimidade democrática, poderá impor sanções de alcance brutal, com base no PIB de cada EM, com base nesses indicadores, a bem do monetarismo e de fundamentos microeconómicos que já passaram à categoria de fé religiosa. Enquanto se discute o sexo dos anjos, as nossas vidas estão em jogo. E quem tiver dúvidas de que, para esta trupe de alquimistas, não passamos de peões, leia e releia a documentação acerca das seis medidas para um novo governo económico. E, já agora, leia e releia, com atenção, o discurso do actual governador do Banco Central Europeu, aquando da entrega do Karlspreis 2011. Percebem-se as pretensões. Aliás, percebe-se todo um distúrbio psíquico e uma instância gravíssima de irrealidade, que deve circular entre Paris, Bruxelas e Frankfurt.

Não se trata de qualquer alarmismo. Continuando a citar Scharpf (pouco dado a alarmismos ou sectarismos),

"As long as it is alleged that they may somehow have an effect on imbalances, the requirements may specify policy changes in a completely undefined range of national competences - including areas like labor relations, education, or health care that have been explicitly protected against European legislation in successive versions of the Treaties". (p. 34)

Ou seja, a Comissão passará a auferir de poderes alargados para impor austeridade. Com um perigoso desequilíbrio institucional: não está dependente de legitimação eleitoral. Por agora, discute-se, com algum fulgor - e optimismo excessivo, quanto a mim, a federalização da Europa. Que ela seja feita, e depressa, ancorando o ou os órgãos dotados de poder executivo, na União Europeia, a procedimentos eleitorais transparentes e à prestação de contas regular e institucionalizada perante as cidadãs e cidadãos da UE. Porque um órgão sem legitimação eleitoral e dotado de poderes coercivos alargados não terá qualquer incentivo para refrear o ímpeto punitivo que já domina Bruxelas. E levaremos, em Portugal ou na Grécia, com um martelo particularmente duro. Continuamente. Porque o governo neoliberal não favorece o mercado livre, a democracia ou o socialismo; favorece o reforço de uma estrutura de poder que intensifica assimetrias brutais e transfere riqueza, oportunidades e saúde para um conjunto cada vez mais diminuto de pessoas. Se é preciso tomarmos anti-depressivos? Que tomemos. Se é preciso andar quatro horas em transportes privados para chegar a um call-center onde ganhamos 400 euros mensais? "É a economia, é o mercado". É, pois é.

A maioria conservadora no Parlamento Europeu garante, na prática, a aprovação destas medidas. O problema é que estás medidas desgastarão ainda mais o equilíbrio da UEM, porque garantem a continuação das economias excedentárias/deficitárias como tal, sem que existam mecanismos redistributivos de compensação. De facto, e porque os memorandos de entendimento impostos aos governos da Grécia, Irlanda e Portugal são economicamente deterministas, isto é, impõem um percurso pré-determinado aos países em causa (porque não enfrentam o problema da dívida privada, não definem prioridades de política industrial, não impõem sistemas fiscais progressivos nem impõem controlos de capital, além de não ser prevista a negociação de taxas de juro específicas com o BCE), e esse percurso é uma espiral destruidora que impede qualquer cumprimento das "recomendações" impostas pela Comissão Europeia, com base em indicadores tirados da cartola.

Se se quer continuar a discutir o Bilderberg, o grunhir do sujeito actualmente conhecido por Presidente da República ou a derrota suposta do partido dos meninos que vão a manifs e jogam na playstation em casa dos papás (curioso como um partido aparentemente tão irrelevante e pouco representativo suscita tanto ácido gástrico), força. Enquanto isso, nos corredores e nos despachos, reconstrói-se a Europa, uma Europa liberal-paternalista, onde os trabalhadores e os pobres são tratados com mão-de-ferro e as classes cosmopolitas levam com luvinhas de seda.

Ao menos, teremos mais razões para dizer que não somos contra o sistema, que o sistema é que é contra nós. Se, ao menos, tivéssemos prestado menos atenção à paróquia e mais à Igreja, talvez as coisas fossem diferentes.

Link para Sessão Plenária Parlamento Europeu 22.06/23.06
Link para paper Fritz Scharpf
Link para discurso Trichet

Um comentário:

  1. Bem, eu li a versão referendada (em França) do Tratado, não li a versão final do que depois passou a chamar-se Tratado de Lisboa, mas no que eu li não estavam estes super poderes CE. Estavam muitas outras obscenidades, mas isto é demais!

    Isto é completamente à revelia até do ultra-liberal Tratado de Lisboa, não é?

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