quarta-feira, 2 de novembro de 2011

No Egeu, algo de novo?

O anúncio de uma proposta de referendo (e reitero - anúncio de proposta) pelo PM grego tem muitas coisas mal explicadas, mas terá consequências importantes. Algumas:

Coisas mal explicadas:
1. As instituições são uma chatice.

"O Presidente deve anunciar um referendo depois da votação favorável de uma maioria [absoluta] dos MPs, sob proposta do Governo (sobre "questões nacionais cruciais"); ou leis sobre "questões sociais relevantes" (com a excepção de questões fiscais), depois de uma decisão de 3/5 dos MPs". aqui (44, 2) e aqui (h/t Pedro Magalhães

Tendo em conta que será votada uma moção de confiança, na próxima 6ª-feira, num parlamento onde as cisões, os cismas e os autismos dominam, parece-me prudente respirar fundo e, a quem o anúncio de Papandreou parecer mais que uma acrobacia desesperada ou uma jogada política para encostar toda a oposição às cordas (a referência aos autismos parlamentares dirige-se a estes senhores), esperar. À velocidade a que o PASOK está a perder peso no parlamento, não será um passeio à beira-mar. Eu, confesso, não espero grande coisa disto, a não ser mais um ponto de pressão sobre o povo grego, que será fustigado, sem dó nem piedade, por todo o aparato mediático grego, europeu e cosmocapitalista (Irlanda, França, anyone?).

Para mim, Papandreou dura até 6ª-feira e haverá eleições ou, melhor, um governo de salvação nacional apoiado pelo trio de arcontes furiosos. E este cenário até pode ter pesado na decisão de Papandreou.

2. As perguntas importam. O contexto importa mais.

A quem acha que o objecto do referendo será o acordo europeu de 27 de Outubro: leiam isto. Não, o objecto do hipotético referendo será uma escolha simples: dracma ou euro? O inferno conhecido ou o inferno desconhecido? Caso venha a acontecer, e isso não é linear, o resultado não é óbvio. Sim, a maior parte da população grega discorda da perda de soberania e das medidas de hiper-austeridade impostas a partir do comité de arcontes estrangeiros; no entanto, a maior parte dessa população não quer voltar ao dracma. Além disso, o último referendo foi efectuado em 1974.
Por isso, deitar foguetes antes de sabermos coisas como a) que perguntas, b) quantas perguntas, c) a ordem das perguntas, d) a data do referendo, é prematuro.

3. Vitória. De quê? De quem?

Acolher o referendo parece deixar implícito que o povo grego terá algo a ganhar. Não, não terá. Este é um jogo em que a sociedade grega deixou de ter poder decisório. Sejamos honestos, por uma vez: a sociedade grega entrou num processo de desagregação que não poderia ser parado ou revertido num ano, ainda que se transferissem todas as gregas e gregos para a Noruega. Estamos a olhar para um processo de destruição controlada. Em vez de se atentar somente nos processos de resistência, atente-se também na destruição. Aprendem-se lições valiosas. A austeridade destrói. A austeridade é Schumpeter cortado ao meio. Este anúncio de proposta não alterará isso.
Assumindo que o referendo acontecerá e a recusa do acordo será aprovada por mais de 50% da população votante, as consequências serão imprevisíveis. Em primeiro lugar, não é óbvio que a recusa do povo grego resulte na recusa do governo grego. Na Grécia, o povo já não é soberano, pelo que esta avaliação é relevante. Em segundo lugar, a recusa do acordo poderá resultar numa repetição dos episódios na Irlanda e na França, aquando do Tratado de Lisboa. Em terceiro lugar, as sanções impostas à Grécia pelo directorado Paris-Berlim-Amesterdão-Helsínquia não estão determinadas pelo acquis comunitário: não existem, lembremos, e antes de falarmos levianamente de saídas do euro e da UE, provisões legais específicas para processos de saída voluntária ou expulsão da UE e/ou da UEM. O TFEU teria que ser reescrito e as instituições europeias não são conhecidas pela sua agilidade. A saída/expulsão unilateral seria um acto de consequências imprevisíveis, faria regredir o processo de integração europeia e poderia instigar sanções pecuniárias/comerciais que exponenciariam o sofrimento do povo grego.

Portanto, cantarolar, por estes dias, o panegírico da democracia é um exercício fútil. É preciso lutar por ela e descortinar as questões sistémicas que sustentam estes eventos Entretanto, a elite grega não perde tempo e apressa-se a transferir capitais.

Passando às consequências importantes:

1. As atitudes perante o anúncio de proposta.

As respostas ao anúncio serão importantes. Permitir-nos-ão compreender, um pouco melhor, como se posicionam as lideranças e as instituições, já para não falar da intelectualidade cronista. Até agora, as reacções consternadas, irritadas ou desconcertadas são clarificadoras: esta gente só gosta da democracia quando lhes afaga o lombo. Quando os meninos sentem que há um risco, calculado e pequeno, de serem contrariados, choram e fazem birra. Ou, ajustada a escala, mobilizam recursos cognitivos e materiais para fustigar seres humanos já combalidos pela imposição de um regime austeritário com a mensagem que lhes apraz: "é calar e comer, seus pecadores-gastadores-devedores".
É evidente que ler comentários idiotas como este (um dia destes, ainda hei-de perceber como é possível Nicolau Santos partilhar espaço com crónicas de tão reles calibre) não serve para nada, a não ser para derivar as tais consequências importantes.
Isto não é totalmente mau. Assim, percebemos que os procedimentos democráticos lhes desagradam. Percebemos que o povo grego ainda lhes mete medo. E sabemos que há mais um domínio político onde a hegemonia está em erosão acelerada.
Vejam bem as crónicas que se seguirão, em todos os jornais, blogues e televisões. Quem disser que a Grécia está a levar a Europa para o abismo, que Papandreou é um ingrato, que o povo grego tem mais é que aguentar, que o referendo é "desnecessário, fútil e perigoso" (Hirschman, Hirschman, quanta razão...), que é preciso fazer festinhas aos mercados e o referendo é uma forma de esmurrá-los, está a sinalizar que a democracia é facultativa. Se convier, tudo bem. De outra forma, o povo caladinho, ou os tanques, rapidamente e em força.

2. O referendo terá impacto, mesmo que nunca venha a ser realizado.

Os "mercados", seja lá o que isso for, já reagiram. A Société Générale perdeu 17% do seu valor em bolsa. O Deutsche Bank perdeu 8%. Joseph Ackermann estará a bufar de raiva contra a palavra "referendo", contra Papandreou e contra o Mediterrâneo em geral. Pior para ele: mesmo que as gregas e gregos não venham a exercer o seu direito, a democracia ainda dói à elite do poder.
Com tudo isto, é preciso aguardar pelos resultados da votação da moção de confiança, na 6ª, e pelos multivariados discursos do duo dinâmico Merkozý, em Cannes, e dos parceiros do G20. Fazer a corte à China e ao Brasil pode ter-se tornado uma prioridade ou uma banalidade: depende da alavancagem da elite europeia sobre o governo grego. Além disso, ali para a Kaiserstrasse, em Frankfurt-am-Main, há-de haver um banqueiro italiano a fazer contas à vida. Das duas uma: ou deita fora o legado do seu antecessor e faz de governador a sério, ou ergue um altar a Trichet e as nossas filhas e netos vão continuar a criticar e a tentar combater o austeritarismo.

3. As ligações, filho, as ligações.

O anúncio de Papandreou pode ser um passo importante para refocar o debate no que é realmente importante: a construção de um sistema de relações sociais que incorpore a democracia económica e política. E mais um sinal: os movimentos sociais estão a reagir com análises independentes, críticas e solidárias.



Um comentário:

  1. Luís,
    excelente post.

    E as consequências para nós em Portugal do resultado do referendo?
    Se o sim ganhar legitimará a austeridade? Ou alguém tentará impôr novamente a convesa da inevitabilidade? Certamente que sim.

    Se o não ganhar não servirá como tentaiva de demonstrar que não há outro caminho? Ou muito me engano ou o eixo franco-alemão tudo fará para que o caos se instale ainda mais e que sirva de exemplo aos outros (nós, os irlandeses, os italianos.....).

    Temos de começar a desmistificar isto depressa.

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