sábado, 3 de dezembro de 2011

Andróides neocalvinistas

Pegando num post de Paul Krugman, e lendo a imprensa económica portuguesa, parece que vivemos num filme de Sam Raimi, desta feita realizado por alquimistas e charlatães com cursos de economia neoclássica. Ou por escrevinhadores em blogues comicamente reaccionários.
A lenga-lenga reza assim: era uma vez um mundo encantado. No sul, havia sol a mais, as pessoas não gostavam de poupar e ainda menos de trabalhar; preferiam ir para o café, beber até cair e arrotar. Gente improdutiva, portanto. No norte, os paladinos da eficiência, poupadinhos e polidos, fizeram tudo o que deviam. Até que alguém, certo dia, se lembrou de que esse mundo devia competir com outro, do lado de lá do mar. A melhor maneira, disseram os sábios, era fazer com que toda a gente, bebendo copos ou trabalhando, usasse a mesma moeda. Como a moeda não é uma construção política, mas tão natural como a chuva, ninguém achou precisar de uma autoridade para corrigir os problemas que surgissem. É evidente que os sábios não consultaram os cidadãos acerca destes problemas; já se sabe que uns bebem vinho e outros trabalham até cair; não havia tempo para delírios desses.
Está claro que a coisa tinha tudo para correr bem: bastava que toda a gente aspirasse pozinhos de perlimpimpim e se transformasse em andróides neocalvinistas. Mas nem tudo correu bem. Aliás, correu tudo mal porque o sol, o vinho e o carácter pecador da gente meridional destroçou o compromisso. Era uma moeda para todos dominar, perdão, ajudar. Os bancos bem tentaram, mas a coisa também não correu bem. Pobrezinhos, acabaram por preferir lucros fáceis através de produtos derivados e práticas predatórias, em vez de investir na economia produtiva. E, é claro, já ninguém se lembra dos anos 2007-2010; os pozinhos de perlimpimpim causaram uma ataque de amnésia. Os sábios de barba branca decidiram que a culpa era dos bebedores de vinho e era preciso bater-lhes até se transformarem em trabalhadores poupadinhos.
É uma história bonita. E verosímil.

Até alguém se ter lembrado de ir ver dados concretos:


Até eu, que não sou economista ou particularmente versado em estatística, consigo ver que as balanças de pagamentos começam a seguir um padrão após 1992 e que esse padrão se acentua após 1998-2002. A não ser que os alquimistas tenham descoberto que alguém envenenou os depósitos de água no Mediterrâneo e que a população espanhola, grega, italiana e portuguesa se tornou num oceano de zombies viciados em crédito, isto indica que existem desequilíbrios estruturais. Tive um professor que chamou, a isto, o "teste interocular". Ou seja: vejam aquilo que está à frente dos olhos antes de proferirem juízos.


Quem diria? Parece que os neocalvinistas virtuosos não existem. Em 2001, Alemanha, Áustria, Espanha e Portugal tinham rácios de dívida pública líquida idênticos. Não vou debater o problema da dívida privada, porque é melhor não entrar em discussões sobre a financeirização do turbocapitalismo predatório, viciado em extracção de renda às famílias, e a incompetência da classe capitalista portuguesa. Numa palavra: Europarque.


Dois testes interoculares: em 2000, qual era o país com a menor dívida pública bruta em percentagem do PIB? Há quantos anos está a Alemanha em violação expressa do Pacto de Estabilidade e Crescimento?



Data from World Bank
E ainda outro teste interocular: a partir de que ano se vê um desemparelhamento completo entre os bêbados e os neocalvinistas?

E ainda outra pergunta: qual é o país que aparece sempre no top 3 da lista de parceiros comerciais de Espanha, Grécia, Itália e Portugal?

E a pergunta para o milhão de escudos: que coisa aconteceu em 1998-2002 e poderá estar na origem destas tendências? (pista: não houve uma deriva despesista:
)

Enquanto continuam a vomitar banalidades acerca da imoralidade fundamental de populações inteiras, os megafones do senso comum tem um efeito mais pernicioso que a criação de ruído e conformismo. Impedem-nos de encontrar soluções. Medina Carreira é um bom exemplo disto. Embora se apresente como especialista em finanças públicas, a sua especialidade é o cilício e a chibata. Trata-se de um vendedor de banha da cobra com um talento inusitado para usar preconceitos historicamente sedimentados e convencer algumas pessoas incautas ou predispostas ao respeitinho de que a culpa é delas, que elas não poupam, que elas são umas vadias, que é preciso cortar tudo. E, embora já tenha sido demonstrado, à saciedade, que nada do que aquela gente diz solucionará algo, eles continuam.

Merkel, Sarkozy e Cameron não passam de trambolhos socializados em circuitos elitistas onde a "populaça" é tida como mesquinha e incapaz de governar ou ser governada; são círculos onde a realidade tem lugar secundário e a divisão do mundo em bêbados e poupadinhos é o quadro de referência dominante. Com as armas propagandísticas de que dispõem, conseguem definir a coerência interna e os limites exteriores do debate. Ficamos à mercê de mundividências autoritárias. E os crápulas do universo comentarístico aproveitam-se disso. Bradam contra a falta de formação da população portuguesa, mas querem acabar com a educação desmercadorizada. Melhor para eles: num país com taxas decentes de literacia, extinguir-se-iam como os ignorantes que são.

E é por isso que o dia 9 de Dezembro não vai trazer novidades, boas ou más. O caminho já está traçado. Resta respirar fundo, cerrar fileiras e resistir. Para que a Europa não acorde amanhã povoada de neocalvinistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário