sexta-feira, 2 de março de 2012

O referendo da Irlanda à UE pode ser um golpe contra a ‘austeridade’









O Governo irlandês em Dublin está a arriscar. Ao convocar um referendo ao último tratado europeu, arrisca-se a enfrentar o que enfrenta a maioria dos Governos europeus – praticamente todos os partidos que implementaram medidas de austeridade estão a ser rejeitados pelos seus eleitorados. Um tratado europeu que promete reduções permanentes dos gastos públicos pode não ter um resultado muito melhor.

Não é, de todo, surpreendente que a austeridade não seja popular. Não é mais do que a transferência de rendimentos do trabalho e dos pobres para o capital e para os ricos. Uma das grandes falácias desta crise é que “
não há mais dinheiro”. Isto é totalmente falso. Há empresas por toda a Europa a nadar em dinheiro. E a participação dos lucros no rendimento nacional aumentou. É por isto que os mercados accionistas estão em alta – os rendimentos das empresas (lucros) estão em alta.

Em alguns casos, como na Irlanda, o nível total dos lucros tem subido, mesmo enquanto o rendimento das famílias tem descido e a queda do investimento privado ultrapassa a contracção do PIB.

Mas o Governo de Dublin não está cheio de jogadores irresponsáveis. A coligação governamental começou por resistir a todas as exigências de um referendo ao tratado. Mas teve que ceder à pressão popular pela votação de mais um tratado de longo alcance. A persistência na recusa do referendo teria levado, muito provavelmente, a uma contestação legal da decisão. O novo presidente irlandês, Michael Higgins, ele próprio um produto da mudança à esquerda na política irlandesa, ajudou a exercer pressão.

Todo o passado recente indica que os eleitores irlandeses serão fortemente pressionados a votar Sim. Se votarem Não, serão acusados de destruir o Euro e de todas as desgraças que se seguirão.

Mas quem está a destruir a economia europeia, e potencialmente o euro, são os políticos que permitem que o capital circule livremente na zona euro quando este é distribuído pelos detentores de obrigações, e impedem que o Estado redistribua capital de acordo com o que entende ser economicamente racional. O sistema federal nos EUA, ou Alemanha, e até num certo sentido na Grã-Bretanha, garante que se, por exemplo, Rhode Island entra em falência, a estabilidade da união monetária do Dólar americano não corre perigo. A Grécia representa pouco mais para a zona euro que Rhode Island para os EUA. A diferença é que a maior parte das despesas e da recolha de impostos é assumida pelo governo federal americano.
O que está a causar uma crise estrutural da zona euro é a recusa por parte da Europa de um mecanismo de transferências orçamentais que seja compatível com uma união monetária.

Em vez disto, como contrapartida do resgate aos credores gregos, a troika da UE, BCE e FMI insiste em ainda mais austeridade, ou seja, mais transferência de rendimentos do trabalho para o capital. O tratado determina uma restrição governamental dos “défices estruturais”, cuja existência nebulosa permite que tecnocratas não eleitos imponham à Europa todos os cortes que bem entendem. Assim, a “austeridade” será a norma, tanto no centro como na periferia da Europa.

E no entanto, é óbvio que estas políticas não estão a resultar; e agora fala-se de abandonar os gregos à sua sorte, com a imposição de cláusulas de compensação que nos fazem lembrar os tempos de Versailles.

Se os eleitores irlandeses rejeitarem o tratado estarão a prestar um enorme serviço à população da Europa.
Pode ser o ponto de viragem na Europa e não só; um travão da vaga de austeridade antes que ela se torne incontrolável.

Na outra face da Europa, na Grécia tem havido uma oposição sistemática às medidas da troika. Apesar de muito se ouvir que protestar não vale a pena, a Grécia teve um abatimento da dívida e a taxa de juro que está obrigada a pagar foi reduzida.

Na Irlanda, as circunstâncias políticas favorecem a possibilidade de um ataque político objectivo às medidas desastrosas e anti-democráticas que têm sido seguidas desde o início da crise.

Um voto SIM significa a continuação do pesadelo.
Um voto NÃO seria um golpe a favor de todas as vítimas da austeridade e de todos os democratas da Europa.


By Michael Burke, The Guardian, 29/02/12

Tradução/negritos de Sandra Paiva; revisão de Paulo Coimbra.

Publicado no ESQUERDA.NET
Artigo original aqui.

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