quinta-feira, 26 de julho de 2012

Santa Filomena: quatro perguntas à Câmara Municipal da Amadora

«A erradicação do núcleo degradado de Santa Filomena é uma etapa fulcral para atingir o objetivo de continuar a construir uma Cidade socialmente mais justa e territorialmente coesa no respeito e na prossecução dos interesses de todos os que nela habitam».

(Do comunicado da Câmara Municipal da Amadora, hoje divulgado).

Depois de cercar e impedir o acesso ao bairro, as escavadoras municipais deram hoje início às operações de despejo e demolição no Bairro de Santa Filomena. Das 46 famílias que ficarão sem casa no decurso desta operação, apenas 28 serão realojadas. Às restantes, a Câmara Municipal da Amadora limitou-se a propor o pagamento da viagem de repatriamento para Cabo Verde ou, em alternativa, três meses de renda no mercado livre. Todas as famílias recusaram a viagem de regresso e apenas 10, em óbvias circunstâncias de pressão e intimidação, se resignaram à efémera solução do cheque de arrendamento.

A situação económica e social dos moradores do bairro é gritante e o município certamente não a desconhece. Aliás, em nenhum caso é invocada, pela edilidade, a existência de situações económicas que tornem as famílias não elegíveis para efeitos de resposta social pública. Na página do colectivo Habita encontram-se exemplos de situações dramáticas em que vivem pessoas que hoje perderam a casa. Há por isso questões a que a câmara municipal tem de dar uma resposta clara:

1. Tratando-se de situações idênticas, face à decisão de erradicação do Bairro de Santa Filomena, com que fundamento - política e socialmente aceitável - a CMA decidiu diferenciar a resposta às famílias abrangidas, realojando as que estavam inscritas pelo recenseamento de 1993 e colocando as restantes perante soluções precárias ou humanamente inaceitáveis?

2. Porque razão decidiu a câmara ignorar, de forma consciente e ostensiva, as providências cautelares em curso, mesmo que delas apenas tivesse conhecimento não oficial?

3. Conhecendo a difícil situação que o país atravessa, e as condições socio-económicas das famílias que moram no Bairro de Santa Filomena, como justifica a câmara a urgência em proceder à sua demolição, sem cuidar de garantir soluções perduráveis, justas e adequadas a todos os que nele habitam?

4. Porque é que nem sequer foi equacionada a possibilidade de realojar estas famílias no próprio bairro, na sequência da sua requalificação? Que contactos foram feitos com o Estado central tendo em vista obter apoios para resolver o problema?

Sem uma resposta precisa a estas questões, o deplorável cinismo com que a Câmara Municipal da Amadora termina o seu comunicado de hoje pode ser traduzido numa frase simples: «operação de limpeza étnica» (e não, como se quer fazer crer, do início de um processo cor-de-rosa que conduzirá à construção de «uma Cidade socialmente mais justa e territorialmente coesa, no respeito e na prossecução dos interesses de todos os que nela habitam»).

(Publicado originalmente no Ladrões de Bicicletas)

A habitação, uma condição para a liberdade



É vergonhoso o que está acontecer às pessoas do Bairro de Sta Filomena. A elas, e a todas as pessoas que estão a perder as suas casas, vítimas de um política de habitação assente na especulação e não nos direitos das pessoas.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) é bem clara:
Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. 
(Artº 65º).

Também Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais[1] reconhece que
o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da miséria não pode ser realizado a menos que sejam criadas condições que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos económicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos (Preâmbulo)

e estabelece
o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. (Artº 11º)

A CRP foi escrita numa processo constituinte construído por um país que decidiu não passar um pano branco sobre décadas de miséria, de medo e muita repressão. Entendeu-se que não há liberdade com fome, nem há pão que aplaque o medo. Foi escrita em 1975 e foi embalada, mesmo que de forma diferida, pelo movimento de institucionalização dos direitos humanos que marcou Europa do pós-guerra.  

Nem meio século depois e, por todo o mundo, a habitação tornou-se objecto de especulação em mercados intoxicados e é hoje uma das nossas principais dores de cabeça: de dia para dia, crescem o número de pessoas que perdem a sua casa, movimento que se dá num ritmo desconcertante. Mais do que nunca, em tempo de austeridade e de desemprego, despejar pessoas sem garantir alternativa não é aceitável, não é admissível.

É urgente a nossa actuação. 
É a vida e a liberdade de mais de 280 pessoas que está em jogo, hoje, no Bairro de Santa Filomena.


[1] Adoptado e aberto à assinatura, ratificação e adesão pela resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de Dezembro de 1966. Entrada em vigor na ordem internacional: 3 de Janeiro de 1976, em conformidade com o artigo 27.º. O Pacto foi adoptada pelo Estado Português nesta altura e entrou em em vigor na ordem jurídica portuguesa a 31 de Outubro de 1978.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL GARANTE IMPUNIDADE DO ROUBO!










O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 353/2012, relativo à questão dos cortes dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores da Administração Pública constitui – ao invés do que alguns opinadores logo trataram de pregar – uma errada, injusta e perigosa decisão contra os trabalhadores.

Antes de mais, porque passa por completo ao lado da questão de que os referidos cortes lesam, antes de mais, os princípios da protecção da confiança e da certeza e segurança jurídica dos cidadãos (não sendo aceitável o argumento de que estes, em tempo dito de crise, têm de estar preparados para tudo e, consequentemente, não se pode dizer que sejam surpreendidos por qualquer medida, por mais gravosa que ela seja). Como passa ao lado de que a mais grave violação do princípio da igualdade por parte das leis do orçamento reside na circunstância de apenas os titulares de rendimentos do trabalho terem de sujeitar os sacrifícios da drástica redução dos mesmos, enquanto os titulares de outros tipo de rendimentos, e desde logo os do Capital, os não suportarem, e muito menos na mesma medida e carga de esforço.

De seguida, porque – depois de a lastimável saga da eleição dos três novos membros se ter arrastado o tempo suficiente para o Acórdão sobre esta questão do corte dos subsídios só ser proferido depois do subsídio de férias já ter sido extorquido aos trabalhadores da Administração Pública – o Tribunal, usando artificiosamente do mecanismo da limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, e sob a expressa invocação da necessidade de cumprir as exigências da tróica (!?) vem despudoradamente estabelecer que tal declaração afinal não produz efeitos e não só relativamente ao subsídio de férias (já entretanto propositadamente extorquido) mas também quanto ao subsídio de Natal, cujo prazo de pagamento, porém, só ocorre daqui a cerca de 5 meses!? Ou seja, e em suma, neste Acórdão o Tribunal Constitucional declara que foi inconstitucional o roubo do subsídio de férias e que também será inconstitucional o roubo do subsídio de Natal, mas logo decreta que… o produto desse roubo não é para ser restituído às respectivas vítimas!

Finalmente, este mesmo Acórdão, da forma como enquadra e proclama o princípio da igualdade, no fundo está é a ensinar o Governo, e a legitimar desde já as respectivas medidas, sobre como deve igualizar “por baixo”, ou seja, está a dizer a Passos Coelho que se para o próximo ano ele retirar os dois subsídios a todos os trabalhadores por conta de outrém, sejam eles públicos ou privados, poderá desde já contar com a chancela do Tribunal.

Em suma, este Acórdão - que alguns dirigentes políticos dos partidos da oposição procuraram apresentar como uma grande vitória dos trabalhadores – deixa por completo impune o roubo dos subsídios de férias e de Natal neste ano de 2012 e ensina e incentiva o Governo a adoptar para 2013 medidas ainda mais gravosas contra a generalidade dos trabalhadores.

É caso para dizer: com “vitórias” destas, quem precisa, afinal, de verdadeiras derrotas?

António Garcia Pereira

(Texto publicado em Blog Garcia Pereira)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Prioridades colectivas

Enfermeiros contratados a quatro euros por hora. "(...) no final do mês corresponde a cerca de 555 euros brutos e a 250 a 300 euros após os descontos, para 140 horas mensais de trabalho."
Médicos contratados a prazo. Professores com salários e situações profissionais miseráveis. 


Entretanto, as actividades do sector financeiro e segurador são remuneradas com valores que triplicam as remunerações na saúde e na educação. Em vez das diatribes costumeiras sobre a financeirização, das quais começo a fartar-me, por não explicarem tudo e apresentarem os mundos sociais como entidades inertes e sobredeterminadas, fico-me pelas perguntas.


Que revelará isto sobre nós, enquanto comunidade? Quando prezamos mais o papel social de um corretor ou de um administrador não-executivo que uma enfermeira ou um professor, que país, comunidade, sociedade, estamos a deixar a quem vier depois de nós? Sim, precária, insegura, etc.. Mas há aqui algo de mais sinistro. Quando se valoriza mais quem "gera valor" monetarizável, afirmando a primazia da teologia do dinheiro e o preço como nec plus ultra da vida social, não faltará muito para nos constituirmos enquanto sociedade de mercado.


E porquê? Para quê? Sei as respostas da cartilha, mas seria interessante debater isto com maior largura de banda. Pessoalmente, nem sequer sei o que é, na esfera civil portuguesa, uma sociedade bem-sucedida. Talvez seja porque já não somos capazes de imaginá-la; talvez seja porque temos, enquanto intelectuais orgânicos, gente como António Barreto ou Medina Carreira. Mais uma vez, respostas demasiado fáceis e desenrascadas.


Quando se desvaloriza a dignidade da medicina, da enfermagem e da educação, afirmando que o El Dorado está na Deloitte e na KPMG, ou num qualquer banco - de preferência gerindo private equity e prevenção fiscal com recurso às Ilhas Caimão -, isso não resulta apenas da exploração da classe trabalhadora e do domínio dos meios de produção por parte da classe capitalista. É uma dinâmica longa, não exclusivamente portuguesa, e hegemónica, cuja manutenção também é da nossa responsabilidade colectiva.


Não bastam respostas como "alienação" ou "justificação sistémica". É preciso perguntar por que razão se considera apropriada a destruição dos modos de vida que sustentam estas profissões, em nome do predicado da eficiência, e por que razão se assume como apropriado que, a prazo, os cursos de economia neoclássica, gestão e os MBA tendam a ter cada vez mais alunos matriculados com a certeza de que o mais importante é ganhar muito dinheiro. Talvez seja importante perguntar, e não apenas à "classe política" (uma criação pós-moderna), o que se entende por vida excelente e sociedade bem-sucedida. Perguntas aburguesadas? Não me parece. Todos os seres humanos têm uma noção daquilo que é uma vida bem vivida e de justiça social, seja qual for a sua posição no esquema hierárquico das sociedades contemporâneos. E, já agora, o que é isso de "justiça", o que significa e, mais importante, como é vivida no quotidiano. Não é preciso um doutoramento para dizermos o que é, na nossa opinião, uma vida excelente, bem vivida e realizada; bastam exemplos, e podemos partir daí. Tal como não é preciso um doutoramento para saber o que é uma sociedade bem-sucedida, para sabermos quais são as profissões que devem ser respeitadas e bem remuneradas, para sabermos se queremos que a mortalidade infantil desça e que a literacia suba. 


Se o processo colectivo de tomada de decisões não se ajusta às prioridades colectivas, talvez esteja na altura de reavaliar o processo e tentar causar uma ruptura. Contudo, uma pergunta ligeiramente mais cínica leva-me a questionar também prioridades e os seus efeitos na interacção entre seres humanos na nossa sociedade. Talvez as prioridades, estas prioridades que nos tornam colectivamente impermeáveis à precarização da vida de quem cuida de nós e dos membros das nossas redes sociais, também sejam importantes.